ESG

A dupla materialidade como vantagem competitiva: um olhar além da regulação

Evento na Universitat Politècnica de València reuniu lideranças em sustentabilidade para apresentar um toolkit que apoiou empresas como Telefónica, Repsol, Accenture e Club Atlético de Madrid em suas jornadas para reportar a dupla materialidade

A dupla materialidade está no centro da CSRD (Corporate Sustainability Reporting Directive), diretiva europeia que entrou em vigor em janeiro de 2023 e passou a ser aplicada de forma escalonada a partir de 2024. Formulado pela Comissão Europeia em 2019, esse conceito surgiu como resposta a uma demanda crescente da sociedade por mais responsabilidade corporativa diante dos impactos socioambientais das atividades empresariais. Ela propõe uma abordagem integrada, que considera dois pontos de vista complementares:

  • Materialidade de impacto: o impacto que uma empresa causa no meio ambiente e na sociedade.
  • Materialidade financeira: os riscos e as oportunidades que as questões socioambientais representam para os negócios.

Foi justamente para apoiar as empresas nesse desafio que a DIRSE (associação espanhola de executivos de sustentabilidade) em parceria com a Telefónica, desenvolveu o toolkit Como abordar a dupla materialidade na empresa, um guia que combina teoria, diretrizes práticas e estudos de caso reais. 

O toolkit foi apresentado no dia 6 de maio, em Valência, durante o evento Do cumprimento de regras à oportunidade: a dupla materialidade como vantagem competitiva, realizado na Universitat Politècnica de València.

Fonte: Toolkit Como abordar a dupla materialidade na empresa / Traduzido por A Economia B

Nuria Pizarro Casado, Head de ESG Strategy & Reporting da Telefónica, apresentou os bastidores do processo de adequação da empresa à CSRD, que foi baseado no toolkit.

Ela começou falando sobre a cadeia de valor, tema que costuma ser “o elefante na sala” nos debates sobre sustentabilidade. 

Ao explicar que o modelo de negócio da empresa vai além da conectividade e passa por seguros para celulares, energias renováveis, serviços de segurança, produção de filmes e séries, entre outros, ela ressaltou que tamanha complexidade exige que a análise comece com o mapeamento da cadeia de valor e a identificação dos stakeholders afetados. “Se você não conhece seus stakeholders nem sua cadeia de valor, não tem como avançar nas próximas fases. Essa é a fase zero”, afirmou.

“São muitas atividades que não são tão óbvias – e por mais que pareça que toda empresa sabe o que faz, quando você tem dezenas de subsidiárias em vários países, pode se surpreender. Quando você entende a cadeia de valor, começa a enxergar com mais clareza: ‘Ah, essa atividade aqui, esse serviço naquele país… isso tem impacto, isso representa risco, isso pode ser uma oportunidade’. É tudo muito intuitivo, e você já começa a eliminar ou priorizar temas naturalmente”, contou.

Um passo além do relatório de sustentabilidade

A experiência da Telefónica mostra que a dupla materialidade pode funcionar como uma ferramenta estratégica, não “apenas” como um apoio ao relatório de sustentabilidade. Nuria contou que a dupla materialidade está apontando caminhos na gestão, na estratégia da companhia e no relacionamento com a alta direção.

A Telefónica trabalha com uma matriz que cruza escala e alcance para medir a severidade dos temas e consolidar os IROs – impactos, riscos e oportunidades. O resultado é utilizado em relatórios e também na gestão de riscos e na relação com investidores e fornecedores.

“Começamos com avaliação de impactos em 26 países, depois riscos ESG e cadeia de valor. Tudo isso formou um círculo virtuoso. No início, discutíamos apenas quem envolver na análise de dupla materialidade. Mas depois percebemos que isso gera resultados que vão muito além do relatório. Hoje, usamos os dados de dupla materialidade para decisões de negócio, não só para compliance”, revelou.

Fonte: Toolkit Como abordar a dupla materialidade na empresa / Traduzido por A Economia B

Leia também:
Relatório de sustentabilidade: uma ferramenta de transparência e responsabilidade socioambiental

Limiares, impactos e riscos de dependência

A executiva também falou sobre como a Telefónica estrutura os limiares de materialidade – ou seja, a linha de corte que separa o que entra nos relatórios, planos e decisões estratégicas, do que é considerado pouco relevante ou secundário. Para ela, o mais importante é começar pelos impactos negativos, com foco na severidade, não em probabilidade.

“Se o impacto envolve direitos humanos, a severidade pesa mais do que a chance de ocorrer. Uma morte, por exemplo, não é remediável, mesmo que haja compensação. Portanto, mesmo que a chance de ocorrer seja baixa, se o impacto for grave – irreversível – ele precisa ser priorizado”, destacou.

Além disso, Nuria ressaltou a importância de se mapear os riscos de dependência – de insumos, clientes ou fornecedores. “A dependência pode falir uma empresa. Mesmo grandes corporações podem quebrar por não enxergar esses riscos a tempo”, alertou.

Contra o “ESG genérico”, engajamento focado e dados consistentes

Durante a palestra, Nuria criticou abordagens genéricas que tratam a agenda ESG como um tema isolado ou meramente reputacional. Para ela, pesquisas com stakeholders devem ser seletivas e focadas, não algo que é feito apenas para responder a uma demanda regulatória.

“Não faz sentido perguntar ao cliente se ele se importa com as condições de trabalho dos funcionários. Ele vai dizer que sim, mas isso o afeta? Não. A coleta de dados precisa ser mais refinada para não gerar dados inflados ou irrelevantes”, avaliou.

A gestora encerrou sua fala destacando que o sucesso de um processo de dupla materialidade depende da conexão entre áreas e da maturidade dos times locais, e defendeu o avanço gradual. “O importante é consolidar os dados e criar uma estrutura robusta. A dupla materialidade não é só para publicar relatórios, é para tomar decisões melhores”, concluiu.

Leia também:
Onara Lima: “Sustentabilidade é um tema de C-level, estratégia e negócio”

O que é o Toolkit de Dupla Materialidade da DIRSE?

Desenvolvido pela DIRSE em parceria com a Telefónica, o toolkit Como abordar a dupla materialidade na empresa é um guia prático que ajuda organizações a entender e aplicar o conceito de dupla materialidade de forma estruturada, conforme exigido pela CSRD.

O documento propõe um modelo em quatro passos, começando pela análise de contexto e mapeamento dos stakeholders afetados, passando pela identificação e priorização dos Impactos, Riscos e Oportunidades (IROs), até chegar à consolidação final, com os planos de ação e a mensuração dos impactos financeiros. No prólogo do toolkit, as autoras destacam que “uma materialidade bem implementada não apenas melhora a transparência e a responsabilidade corporativa, mas também ajuda a mitigar riscos, fomenta a inovação e fortalece a confiança e a reputação”.

“Em última instância, a adoção da Dupla Materialidade ajuda as empresas a serem mais resilientes, competitivas e sustentáveis no longo prazo.Ana Gascón Presidenta, Asociación Española de Directivos de Sostenibilidad (ASG) – DIRSE, e Elena Valderrábano Global Chief Sustainability (ESG) Officer, Telefónica.

–> Esse e outros toolkits estão disponíveis gratuitamente no site da DIRSE.

Dupla materialidade ainda é uma conversa de nicho

Além desta matéria, produzi um vídeo sobre o evento. Nele, falo sobre algo que vai além das questões técnicas e de negócios que envolvem a dupla materialidade.

Tive a perceção de que as empresas espanholas enfrentam desafios muito similares com o que vemos no Brasil. Em resumo, tem a ver com comunicação estratégica em pensar além do que pedem os reguladores. No fim, tudo sempre volta a criar cultura. Inclusive, uma das palestrantes fala sobre isso no vídeo.

Continuamos a conversa lá?

 

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Publicado por
João Guilherme Brotto

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