Entrevistas

O impacto da Covid-19 na Agenda 2030 e o futuro pós-pandemia

Pandemia e Agenda 2030
Marina Grossi, presidente do CEBDS
Marina Grossi, presidente do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável, analisa como a pandemia do novo coronavírus deve afetar o progresso dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e comenta a importância da participação do poder privado na construção de um futuro melhor.

Em 2015, a Organização das Nações Unidas (ONU) lançou a Agenda 2030, um documento com 17 objetivos globais para erradicar a pobreza, proteger o planeta e garantir que as pessoas alcancem a paz e a prosperidade. São os chamados Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).

Cada ODS estabelece indicadores específicos a serem alcançados nas respectivas áreas. No total, o documento apresenta 169 metas a serem atingidas, que reúnem 247 indicadores). Tais metas têm um propósito ambicioso: melhorar a qualidade de vida de todas as pessoas, em todo o mundo, até 2030.objetivos de desenvolvimento sustentável – ODSEssa é uma missão que só poderá ser alcançada a partir da ação conjunta do poder público, da iniciativa privada e de todos os cidadãos ao redor do globo. 

Cinco anos depois do lançamento da Agenda 2030 e a uma década do prazo para o cumprimento dos ODS, o mundo enfrenta uma de suas piores crises sanitárias – que desencadeou também crises sociais e econômicas. 

Assim como fez com quase tudo no mundo, a pandemia do novo coronavírus vem afetando – e afetará ainda mais – os problemas englobados nos ODS, especialmente aqueles referentes à saúde, pobreza e desigualdades sociais…

Para entender o impacto disso no progresso da Agenda 2030 e compreender o papel das empresas para a construção de um “novo normal” mais sustentável, equitativo e inclusivo, conversamos com Marina Grossi.

Ela é pioneira na área de sustentabilidade empresarial no Brasil, tem mais de 30 anos de experiência em finanças sustentáveis e risco climático, atua na promoção de modelos de negócios sustentáveis; mobilização e articulação de empresas, governo e sociedade civil; e busca de soluções para o avanço do desenvolvimento sustentável no Brasil. Além disso, é presidente do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS).

Na entrevista, a economista falou sobre quais são os ODS mais impactados pela pandemia e explicou por que as empresas deveriam utilizar a Agenda 2030 para conectar suas estratégias comerciais com as prioridades globais. 

Além disso, Marina falou também sobre: 

– A participação das empresas brasileiras na evolução dos ODS no país;
– Os obstáculos das organizações para conseguir incluir a Agenda 2030 em suas estratégias;
– Os erros que as empresas cometem ao se envolverem em ações focadas nos ODS;
– Como negócios podem definir os ODS mais relevantes de acordo com seus impactos;
– E mais. 

Acompanhe!

Antes da pandemia de Covid-19, qual era o panorama do atendimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável no Brasil?

Marina Grossi: O Brasil tinha – e ainda tem, aliás – um longo caminho a percorrer para responder às metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).

Dos 247 indicadores definidos para os 17 ODS, o país tem:

  • 78 produzidos;
  • 100 em análise ou construção;
  • 56 sem dados;
  • além de cinco sem uma metodologia global e oito que não se aplicam.

Esse contexto mostra com muita clareza que temos muito a avançar, inclusive no próprio desenvolvimento de indicadores.

No setor privado, mais particularmente, há um movimento crescente de mapeamento de ODS prioritários e adoção de ações que estão em sintonia e contribuem para o alcance de metas nacionais.

Existe um entendimento comum de que não é possível retroceder em índices em que tivemos avanços nos últimos anos e de que devemos redobrar os esforços em ODS prioritários, como, por exemplo:

– Erradicação da pobreza;
– Água potável e saneamento;
– Energia limpa e acessível;
– Ação contra a mudança global do clima.
 

Como a a pandemia deve afetar o alcance das metas e dos objetivos da Agenda 2030 no Brasil e no mundo? 

Entendo que temos a oportunidade de dar mais força para essa agenda entre governos e empresas, com um maior esforço para a erradicação da pobreza extrema para todas as pessoas e em todos os lugares até 2030, e um engajamento maior do setor privado em questões relacionadas à saúde. Afinal, alguns dos problemas que foram negligenciados nas últimas décadas ficaram mais claros com a Covid-19. 

A vulnerabilidade da população que vive em submoradias, sem água encanada ou esgoto, que viaja apertada em transporte público e está acostumada a enfrentar longas filas para ser atendida no sistema de saúde ficou evidenciada como um problema mais amplo, relacionado à nossa interdependência social e ambiental. Resultado do desequilíbrio ambiental, o novo coronavírus é uma evidência gritante da necessidade de criarmos uma sociedade mais resiliente. 

Antes da pandemia, o Fórum de Davos deste ano já havia destacado o tema da desigualdade social como fundamental a ser tratado nesta década da implementação dos ODS, demonstrando consciência de que a perpetuação de extremas desigualdades conspira contra a estabilidade econômica e política. 

Quais são as áreas da Agenda 2030 que estão sendo mais afetadas pela pandemia? E por quê? 

A área da saúde, logicamente, é a mais afetada.

Em princípio, a saúde deve ser entendida como fundamental para o desenvolvimento econômico e social e este, quando equitativo e inclusivo, contribui para a saúde das populações. Afinal, possibilita melhores condições de vida e a implementação de sistemas e políticas sociais e de saúde que visam proteger a população e proporcionar qualidade de vida. 

ODS 3 (Assegurar saúde e qualidade de vida para todos em todas as idades) contém nove metas, quatro meios de implementação e o maior número de indicadores (27) entre todos os ODS. São metas que se mostram ainda mais necessárias – embora sejam consideradas ambiciosas – diante da situação social e sanitária mundial, profundamente marcada pela pandemia do novo coronavírus. 

Outros ODS também são determinantes sociais e também têm impacto sobre a saúde – caso, por exemplo, de:

  • Eliminação da fome;
  • Segurança alimentar;
  • Redução da desnutrição;
  • Desenvolvimento infantil;
  • Acesso à água de qualidade e saneamento;
  • Poluição do ar, solo e água.

Você acredita que as metas globais deverão ser revistas por conta do impacto da pandemia de Covid-19 nos problemas relacionados aos ODS? 

Entendo que não. No entanto, é necessário que cada ator desse processo reveja suas metas e seja mais ambicioso em seus compromissos.

Estamos na década da implementação dos ODS e é fundamental que aceleremos o processo para chegar a 2030 com um planeta melhor. 

Qual é o papel das empresas nessa missão? Por que elas deveriam se preocupar com as questões abordadas na Agenda 2030? 

Pandemia e Agenda 2030
Marina Grossi, presidente do CEBDS

Os ODS representam um grande desafio e também uma oportunidade para os negócios. A implementação dos ODS vem estimulando uma maior parceria das empresas com as instituições governamentais e sociais. Esse know-how empresarial é extremamente valioso e determinante para dar escala às boas práticas. 

Estaremos mais capacitados para ampliar o processo de inclusão social, com a geração de emprego e renda; para utilizar de forma sustentável os recursos naturais; e interferir positivamente nas mais diversas áreas – agricultura e pecuária, indústria, finanças, uso de água e saneamento, produção de energia limpa e renovável, sistema de mobilidade urbana, tratamento de resíduos, entre outros. 

Cobrindo uma ampla gama dos tópicos de desenvolvimento sustentável relevantes para as empresas – como, por exemplo, pobreza, saúde, educação, mudanças climáticas e degradação ambiental –, os ODS podem ajudar na conexão de estratégias comerciais com prioridades globais. As empresas podem utilizar os ODS como um quadro global para moldar, conduzir, comunicar e relatar as suas estratégias, seus objetivos e suas atividades. 

No Brasil, qual é o nível de participação das organizações nesse sentido? 

As empresas brasileiras incorporaram a narrativa dos 17 ODS em grande parte das suas análises de mitigação de impactos negativos e maximização de positivos. Isso ajuda na congregação de esforços para o atingimento de um objetivo em comum. 

O CEBDS, por exemplo, em parceria com a Rede Brasil do Pacto Global e o Global Report Initiative (GRI), participou de treinamentos em “Diretrizes para implementação dos ODS na estratégia dos negócios”, tendo como base o documento SDG Compass, para mais de 1.000 representantes de empresas nos últimos quatro anos. 

Quais são os principais obstáculos que impedem que as empresas brasileiras tenham uma participação mais ativa na evolução dos ODS? E o que é preciso para superar esses desafios? 

A cadeia de fornecedores e clientes das grandes empresas tem sido um dos maiores desafios para transformar a economia como um todo na direção do atingimento dos ODS. 

Recentemente, as empresas vêm se esforçando para envolver toda a sua cadeia de valor em diferentes treinamentos sobre o assunto. É uma forma de ampliar o impacto das empresas na contribuição ao alcance das metas dos ODS e na criação de um círculo virtuoso que é benéfico para todos. 

Quais são os principais erros das organizações ao tentarem se envolver em ações focadas na Agenda 2030? E como elas podem evitar esses erros? 

Um erro bastante comum é tentar abraçar todos os 17 ODS de uma vez. É muito tentadora a ideia de uma análise transversal, até pela natureza interdependente de todos os objetivos. 

Contudo, a experiência mostra que a priorização é capaz de atingir resultados mais efetivos (os quais, aliás, invariavelmente acabam afetando outros objetivos e metas). O ideal é que cada empresa faça um exercício interno e veja quais ODS seu negócio impacta direta e indiretamente e como pode contribuir e gerar o maior impacto possível.

Como uma organização pode escolher os ODS mais alinhados às suas operações e públicos? 

A priorização deve ser uma das primeiras etapas do processo. Nem todos os 17 ODS serão igualmente relevantes para uma empresa. A extensão na qual cada empresa pode contribuir com cada um deles, e os riscos e oportunidades que eles representam individualmente, dependerão de muitos fatores. 

A primeira tarefa deve ser realizar uma avaliação dos impactos atuais e potenciais, positivos e negativos que as suas atividades comerciais têm nos ODS e em toda a cadeia de valor. Isso ajudará as organizações a identificarem quando possíveis impactos positivos podem aumentar e quando impactos negativos podem ser reduzidos ou evitados. 

Qualquer empresa pode agir e se envolver em questões relacionadas aos ODS? 

Definitivamente. Desde grandes empresas até pequenos produtores, ou mesmo indivíduos. Um bom exemplo é um Centro Comunitário de Produção de Bonecas Negras, que se envolve com o ODS 10 (Redução das desigualdades) mesmo em pequena escala. 

A soma dessas pequenas ações talvez seja o nosso maior potencial de impacto, e as grandes empresas podem se envolver nesse processo também auxiliando na capacitação e viabilização desses pequenos negócios. 

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Na sua visão, quais são as principais metas e áreas em que o setor privado pode contribuir e fazer toda a diferença? 

Isso depende do tipo da empresa, em qual setor que ela está envolvida e em qual região ela está localizada. As metas devem estar intimamente relacionadas com as prioridades estabelecidas. Afinal, a principal contribuição do setor privado será justamente onde este terá o maior potencial de impacto positivo.

Além disso, é um erro achar que ODS mais diretamente ligados à iniciativa privada (como o ODS 8 – Trabalho decente e Crescimento Econômico – e o ODS 9 – Indústria, Inovação e Infraestrutura) serão comumente onde se pode fazer a maior diferença. É preciso avaliar diferentes fatores, incluindo o que chega na empresa, os resíduos que ela gera, o que ela produz, quem compõe a sua força de trabalho. Cada um dos 17 ODS dependerá também da contribuição da iniciativa privada. 

Especificamente no Brasil, quais são os ODS mais positivamente impactados pelas ações das empresas? 

Todos os ODS estão inter-relacionados, de forma que é difícil separar como a ação individual afeta o resultado final. Poder público, sociedade civil e setor privado devem sempre atuar em conjunto nesse contexto. 

Em termos de investimentos diretos, a educação continuava a ser uma prioridade, de acordo com dados de 2019 (BISC Comunitas). Agora, no pós-pandemia, acredito que veremos um crescimento de investimentos na área de saúde e de redução das desigualdades também. 

Quais são os passos fundamentais para as empresas que desejam contribuir para o alcance das metas da Agenda 2030? 

Seguir os passos citados no Guia dos ODS para as Empresas: 

01) Entendendo os ODS. Em primeiro lugar, as empresas são auxiliadas na familiarização com os ODS. 

02) Definindo prioridades. A fim de aproveitar as oportunidades de negócios mais importantes apresentadas pelos ODS e reduzir os riscos, as empresas são incentivadas a definir as suas prioridades com base em uma avaliação do seu impacto positivo e negativo (atual e potencial) nos ODS através das suas cadeias de valor. 

03) Estabelecendo metas. O estabelecimento de metas é essencial para o sucesso do negócio e ajuda a promover as prioridades compartilhadas e o desempenho aperfeiçoado em toda a organização. Mediante o alinhamento dos objetivos da empresa com os ODS, a administração pode demonstrar o seu compromisso com o desenvolvimento sustentável. 

04) Integração. A integração da sustentabilidade no negócio principal e na governança, e a incorporação das metas de desenvolvimento sustentável em todas as funções da empresa é a chave para atingir as metas estabelecidas. Tendo em vista realizar seus objetivos compartilhados e/ou contribuir para a solução de problemas sistêmicos, cada vez mais empresas engajam em parcerias com sua rede de fornecedores, com empresas do seu setor e até com governos e organizações da sociedade civil. 

05) Relato e comunicação. Os ODS permitem que as empresas relatem informações a respeito do avanço em relação ao desenvolvimento sustentável, utilizando os indicadores comuns e uma série de prioridades compartilhadas. O Guia dos ODS para as Empresas incentiva as empresas a incorporarem os ODS na sua comunicação e relatórios com as outras partes interessadas. 

Clique aqui e acesse o Guia dos ODS para as Empresas. 

De que forma o Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS) atua nesse sentido? 

O CEBDS atua de diversas formas auxiliando as empresas em todos os passos citados acima. Desde treinamentos, em parceria com outras instituições, até a disseminação de boas práticas e incentivando o aumento da ambição e elevando a barra da sustentabilidade. 

Também atuamos conjuntamente em Câmaras Temáticas de Biodiversidade e Bioeconomia, Água e Saneamento, Mudanças do Clima e Energia, Finanças Sustentáveis e Impacto Social. Além disso, temos projetos voltados para Agricultura, Cadeia de Alimentos e Comunicação. 

Nesse sentido, o estabelecimento de parcerias é fundamental para que consigamos ampliar o impacto causado pelas ações. 

Poderia citar um ou mais exemplos de empresas brasileiras que estão contribuindo significativamente para o avanço de algum ODS? 

São vários os exemplos que poderia citar, mas gostaria de colocar alguns mais emblemáticos.

A Cervejaria Ambev, por exemplo, ampliou suas metas de uso de material reciclado em embalagens plásticas. Em 2018, a companhia havia anunciado a meta de ter 100% dos produtos em embalagens retornáveis ou que tivessem mais de 50% de material reciclado em sua composição até 2025. Agora, pretende chegar em 2025 com 100% das embalagens plásticas feitas de material reciclado. Isso afetará direta e indiretamente os ODS 8, 9, 11, 12, 13, 14 e 15.

Além disso, temos o case da BRK Ambiental, que correlacionou a questão de água e saneamento com a igualdade de gênero, mostrando como as mulheres são impactadas por problemas que água encanada e esgoto tratado. ODS 5, 6 e 10 são impactados pelas ações desenvolvidas pela empresa.

E a Votorantim Cimentos tem um case interessante com o reaproveitamento do bagaço do açaí para os fornos das fábricas. Isso contribui para diminuir as emissões de gases do efeito estufa e, portanto, impacta os ODS 9 e 13.

São vários exemplos. Para conferir mais cases, basta acessar o site do Pacto Global da ONU.

Série especial do A Economia B:
10 anos para mudar o mundo 🌎💙

Empreendedorismo social e A Economia B

No início de 2020, começamos no A Economia B uma série especial para mostrar a evolução e o panorama atual da Agenda 2030, listando os desafios que precisariam ser superados para que os ODS fossem alcançados na próxima década. 

Confira os conteúdos já publicados: 

Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – 10 anos para mudar o mundo
Erradicação da pobreza e fome zero e Agricultura sustentável
Saúde e bem-estar para todos
Educação de qualidade e igualdade de gênero 

Nas próximas semanas, publicaremos mais informações sobre os impactos da pandemia no progresso do desenvolvimento sustentável do planeta.
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Francine Pereira

Jornalista, especializada em criação de conteúdo digital. Há mais de 10 anos escrevo sobre tendências de consumo, inovação, tecnologia, empreendedorismo, marketing e vendas. Minha missão aqui no A Economia B é contar histórias de empresas que estão ajudando a transformar o mundo em um lugar mais justo, igualitário e sustentável.

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