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A pandemia e a (des)igualdade de gênero: como essa crise afeta as mulheres

igualdade de gênero e pandemia
Imagem: Mauro Ujetto/ Getty Images

A pandemia de Covid-19 afeta de forma desproporcional mulheres e meninas ao redor do globo. Entenda por que e conheça organizações que estão lutando pela igualdade de gênero – não apenas durante essa crise, mas sempre!

Este conteúdo faz parte da série Pandemia de Covid-19 e os ODS. Clique aqui e confira todos os artigos sobre o impacto dessa crise na Agenda 2030 já publicados.   

  • As mulheres são maioria entre profissionais de saúde que estão diretamente expostos aos riscos de contaminação.
  • O isolamento social pode ser uma ameaça para meninas e mulheres que vivem em condições de abuso. Afinal, contribui para aumentar a violência doméstica e, ao mesmo tempo, dificulta a denúncia.
  • As mulheres são as mais prejudicadas no mercado de trabalho – especialmente as que atuam no mercado informal.
  • E são elas, aliás, que mais se sobrecarregam com o aumento do trabalho doméstico e de cuidado dos filhos…
  • Além disso, a suspensão ou diminuição dos serviços de saúde sexual e reprodutiva durante a pandemia pode gerar um aumento no número de gestações indesejadas, doenças sexualmente transmissíveis e problemas por complicações no parto.

Ou seja, os efeitos sociais e econômicos da pandemia de Covid-19 afetam de maneira especialmente dura a população feminina!

Inclusive, se alcançar a igualdade de gênero globalmente até 2030 já era uma meta ambiciosa antes da pandemia, agora, os efeitos da propagação do novo coronavírus podem provocar até mesmo uma regressão dos indicadores relacionados a esse ODS que pareciam estar avançando nos últimos anos…

Para você ter uma ideia, algumas análises indicam que pode levar mais de 200 anos para a igualdade de gênero ser alcançada em nível global!

No entanto, não podemos deixar que essa estimativa nos paralise. Até porque o ODS 5 – que tem como meta geral alcançar a igualdade de gênero e empoderar mulheres e meninas em todo o mundo – é crucial para a construção de um mundo mais pacífico, próspero e sustentável. Nas palavras da ONU: 

Proporcionar às mulheres e meninas acesso igual à educação, assistência médica, trabalho decente e representação nos processos políticos e econômicos de tomada de decisão alimentará economias sustentáveis e beneficiará as sociedades e a humanidade em geral.”

Portanto, este é o assunto do quinto artigo da série Pandemia de Covid-19 e os ODS!

Siga a leitura, entenda melhor por que meninas e mulheres são mais afetadas por conta da crise econômica, social e sanitária causada pela pandemia de Covid-19 e conheça empresas e ONGs ajudando a amenizar o impacto desta crise neste ODS. 

5 maneiras pelas quais a pandemia de Covid-19 afeta a população feminina e a igualdade de gênero

 A crise atual impacta de forma desigual as mulheres principalmente em cinco esferas: 

  • Trabalho na saúde;
  • Trabalho doméstico;
  • Mercado de trabalho;
  • Violência doméstica;
  • Saúde sexual e reprodutiva.

Vamos nos aprofundar em cada um desses tópicos.

1) Mulheres na saúde durante a pandemia

mulheres e pandemia
Imagem: Lucas Landau e Nilson Sabino/Revista Claudia

Globalmente, as mulheres são maioria na linha de frente contra a Covid-19 – 70% dos profissionais de saúde e serviços sociais em todo o mundo são mulheres. No Brasil, de acordo com o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen):

– 84,7% dos auxiliares e técnicos de enfermagem são do sexo feminino;
– E 86,2% do quadro de enfermeiros no país é composto por mulheres.

Levando em consideração todos os cargos (médicos, agentes comunitários, enfermeiros e técnicos e auxiliares de enfermagem), as mulheres são responsáveis por 79% da força de trabalho na saúde.

Sendo assim, elas estão mais vulneráveis ao contágio da Covid-19. 

A situação para quem trabalha na área da saúde no Brasil é assustadora. O país já é responsável por 30% das mortes de profissionais de enfermagem em todo o mundo durante a pandemia – o recordista mundial nesse quesito.

Segundo o Cofen, em agosto, o número de casos confirmados entre profissionais da categoria chegou a 32.279 – com 350 óbitos.

Para entender a gravidade desse indicador, basta comparar o número de profissionais de enfermagem que faleceram por conta da Covid-19 nos maiores epicentros globais da doença. Juntos, Estados Unidos e Itália tiveram 204 óbitos de enfermeiros na pandemia – 71,5% menos mortes da categoria do que o Brasil.

Indo além, somado ao alto risco de contaminação, as profissionais que trabalham na área da saúde também estão mais expostas a outros riscos ocupacionais deste setor – como, por exemplo:

– Excesso de horas trabalhadas;
– Sofrimento psíquico;
– Fadiga;
– Burnout;
– Estigmatização;
– Violência física e psicológica.

Problemas esses que, aliás, podem ser amplificados por dinâmicas de gênero…

Em junho, o Cofen havia revelado que recebeu mais de 7.700 denúncias de falta de EPI e sobrecarga de trabalho associada ao subdimensionamento profissional. Uma pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas confirma essa falta de apoio para quem trabalha na Saúde:

– Metade desses profissionais não recebeu os equipamentos de proteção individual necessários para atuar durante a pandemia.
– 68% afirmam não ter tido nenhum tipo de treinamento ou orientação para enfrentar essa crise.
– E apenas 20% receberam apoio para cuidar da saúde mental. 

2) Aumento da carga de trabalho doméstico na quarentena

mulheres e pandemia
Imagem: Ketut Subiyanto/Pexels

Antes da pandemia, um levantamento do IBGE apontou que, em média, as mulheres já dedicavam 21,3 horas por semana com afazeres domésticos e cuidado de pessoas, quase o dobro do que os homens gastam com as mesmas tarefas – 10,9 horas.

Agora, por conta das medidas de quarentena – como a instauração do trabalho e estudo remoto –, que fazem com que grande parte das famílias precise equilibrar questões como cuidados com a casa, cuidado dos filhos e home office, a sobrecarga de trabalhos domésticos não remunerados afeta de maneira desproporcional as mulheres. 

Um estudo feito pela Datafolha constatou que 57% das mulheres que estão trabalhando remotamente acumularam também a maior parte dos afazeres domésticos (entre os homens, o índice é de 21%).

Outro levantamento, este realizado pela plataforma Gênero e Número, revelou que 50% das mulheres passaram a cuidar de alguém na pandemia. Na pesquisa, 37,5% das entrevistadas afirmaram serem as únicas responsáveis pelo trabalho doméstico e de cuidado em suas casas. E ainda, mais da metade afirmou que está executando mais tarefas em casa – como preparar alimentos, lavar louça e limpar o domicílio. 

Uma das consequências dessa sobrecarga pode ser percebida na saúde mental das mulheres. A ONU alerta que a pandemia está afetando a saúde mental geral da população, com alguns estudos indicando um aumento nos sintomas de depressão e ansiedade em vários países. Porém, a entidade destaca que as mulheres são ainda mais afetadas nesse sentido, em especial “aquelas que estão fazendo malabarismos com a educação em casa e trabalhando em tarefas domésticas; pessoas idosas e quem possui condições de saúde mental preexistentes”.

3) Mulheres e o desemprego durante a pandemia

Outra área em que as mulheres estão sendo desigualmente prejudicadas pela pandemia é no mercado de trabalho. 

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnadc), 7 milhões de mulheres deixaram o mercado de trabalho desde o início da quarentena – dois milhões a mais que os homens na mesma situação.

É fácil entender por quê. Afinal, muitas empresas retornaram suas atividades “normais” de trabalho, sem considerar a situação das profissionais que não têm onde deixar seus filhos…

Aliás, não é a primeira vez que isso acontece. Experiências recentes comprovam que as mulheres sempre tendem a ser as mais afetadas economicamente em momentos como o que estamos vivendo. Foi o que aconteceu, por exemplo, no continente africano entre 2014 e 2016.

Na ocasião, meses depois de a pandemia de ebola ter sido controlada, a Oxfam International e a ONU Mulheres examinaram o impacto econômico nos epicentros da doença. O estudo mostrou que o avanço do vírus fez quase triplicar a taxa de desemprego da Libéria – tanto para homens quanto para mulheres. Contudo, enquanto os homens recuperaram suas rendas rapidamente após o fim da crise, as mulheres demoraram muito mais para recuperar seus postos de trabalho. 

No caso do surto de ebola, um dos principais fatores que pesaram no impacto entre esse público foi forte participação das mulheres no mercado informal. O que se repete agora.

A ONU alerta que 90% dos trabalhadores da economia informal na América Latina estão sendo severamente afetados pelo confinamento. Na região, 54% das mulheres atuam na informalidade. Em âmbito nacional, 41,5% dos trabalhadores brasileiros têm ocupações informais (38,806 milhões pessoas) – sendo que metade desse grupo (47,3%) é formado por mulheres negras, segundo dados do IBGE.

Nesse sentido, outra questão que indica o peso desigual da pandemia para as mulheres no mercado de trabalho é a vulnerabilidade das trabalhadoras domésticas.

No Brasil, esse grupo de profissionais é formado majoritariamente por mulheres: 92% (dos 6 milhões que atuam nessa área) são mulheres.

O trabalho doméstico foi classificado pelo Ministério Público do Trabalho como não-essencial. Nesse caso, a recomendação é dispensar os profissionais durante a quarentena, mantendo o pagamento do salário. 

Acontece que 70% das profissionais que exercem essa função não possuem carteira de trabalho assinada – segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). 

Ou seja, no contexto da pandemia, essa precariedade dos vínculos trabalhistas faz com que: 

– Uma boa parte das trabalhadoras domésticas continue trabalhando – e se expondo a risco de contaminação.
– Muitas dessas profissionais sejam dispensadas (por vezes, sem os seus direitos trabalhistas assegurados), impactando diretamente suas rendas – e levando muitas mulheres e famílias para a pobreza extrema.

Análises do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelam que os trabalhadores domésticos são os mais afetados pela crise econômica atual. De janeiro a abril, o Brasil sofreu a maior perda de profissionais dessa área em nove anos: 727 mil pessoas deixaram de trabalhar em serviços domésticos, uma queda de 11,8% em relação ao período anterior. Para os sem carteira, a queda foi ainda maior – de 12,6%.

4) Isolamento social e a violência contra mulheres e meninas

mulheres e pandemia
Imagem: FolhaPress

Antes da pandemia de Covid-19: 

Agora, as medidas para conter o novo coronavírus podem intensificar esse problema. 

Afinal, ao mesmo tempo que em que o isolamento social é necessário para a prevenir o contágio de Covid-19, a quarentena agrava a situação de mulheres com parceiros violentos, separando-as das pessoas e dos recursos que podem melhor ajudá-las.

No Brasil, onde 43% dos casos de violência contra mulheres acontecem dentro de casa, o confinamento oferece um contexto de ainda mais perigo para as vítimas. Análises do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) indicam que os feminicídios aumentaram 22% no país entre abril e março. 

O levantamento revelou também que, de maneira geral, houve queda de registros de boletins de ocorrência relacionados à violência contra meninas e mulheres. Contudo, o FBSP pondera que isso não significa que a violência diminuiu, mas que está mais difícil para as mulheres fazerem a denúncia durante a quarentena, já que elas estão próximas do agressor o tempo todo.

Segundo a ONU, antes da pandemia, menos de 40% das mulheres que sofriam violência procuravam ajuda de qualquer tipo. A entidade alerta que o isolamento social pode acabar afastando muitas mulheres que sofrem agressão, impedindo-as de buscar ajuda de amigos, familiares e outras redes de apoio.

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5) Serviços de saúde sexual e reprodutiva e a segurança das mulheres durante a pandemia
 

mulheres e pandemia
Imagem: Frank Dejo/UNICEF

Por último, mas não menos importante e alarmante, vem a questão dos serviços de saúde sexual e reprodutiva e a segurança das mulheres durante a pandemia.

Em abril, o Ministério da Saúde alertou que mulheres grávidas e no puerpério são consideradas como grupo de risco para a Covid-19.

Porém, ao mesmo tempo, muitas cidadãs estão tendo dificuldade de se proteger nesse sentido, já que a pandemia afeta o acesso a métodos e procedimentos contraceptivos e a outros tipos de serviços de planejamento sexual e reprodutivo .

De acordo com análises do Fundo de População da ONU (UNFPA), caso as medidas de quarentena durem seis meses, cerca de 47 milhões de mulheres ficarão sem acesso a contraceptivos modernos em 114 países de baixa e média renda analisados (incluindo o Brasil). Isso pode resultar em 7 milhões de gestações não intencionais!

“A contracepção salva vidas. A mortalidade materna está muito presente em lugares onde há pouco acesso à contracepção. Cada gravidez não planejada também é um perigo de vida para a mulher. Ela pode desviar de uma vida que está indo em uma direção para outra muito mais difícil”, declarou Astrid Bant, representante do UNFPA no Brasil, em entrevista ao O Globo.

O impacto da Covid-19 para as brasileiras grávidas fica claro perante o aumento significativo de morte de gestantes. De acordo com um estudo publicado na revista médica International Journal of Gynecology and Obstetrics

Desde o início da pandemia até 18 de junho foram notificadas 160 mortes de grávidas e puérperas em todo o mundo por Covid-19, sendo 124 delas no Brasil. O país é responsável por 77% das mortes mundiais desse grupo.

Indo além, a Rede CoVida, plataforma de colaboração científica e multidisciplinar focada na pandemia de Covid-19, alerta que a falta de oferta adequada de serviços de saúde sexual e reprodutiva (SSR) pode gerar uma outra importante crise de saúde pública: além do aumento de mortes de mulheres grávidas e no puerpério, a ausência desses serviços agrava o sofrimento psicológico de muitas mulheres, amplia as infecções sexualmente transmissíveis e também o número de abortos não assistidos – o que, consequentemente, leva a mais óbitos maternos e infantis. 

Nesse contexto, recentemente, o Brasil deu alguns passos para trás…

Em junho, a Coordenação de Saúde da Mulher (COSMU/SAPS) havia publicado uma nota técnica alertando sobre a importância da continuidade dos serviços de assistência aos casos de violência sexual e aborto legal e do fortalecimento das ações de planejamento sexual e reprodutivo, no contexto da pandemia da Covid-19. 

Contudo, pouco tempo depois, Eduardo Pazuello, ministro interino da Saúde, suspendeu a nota. Além disso, os técnicos que elaboraram o documento foram exonerados. A suspensão aconteceu por conta da pressão pública e do próprio presidente Jair Bolsonaro, que declarou que, de certa forma, ela “incentivava o aborto”. 

A nota, contudo, foi desenvolvida em alinhamento com as diretrizes da Organização Mundial de Saúde (OMS), que indica que os serviços de atendimento à saúde sexual e reprodutiva, assim como o acesso a contraceptivos e direito ao aborto nos casos previstos em lei, devem ser considerados essenciais e não podem parar devido à pandemia

O Conselho Nacional da Saúde se posicionou dizendo que a retirada da nota representa um “grande retrocesso na Política Nacional de Saúde, em especial no que se refere à Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher”.

O papel do poder privado

Assim como o racismo, a violência e a discriminação contra as mulheres também é um problema estrutural na sociedade. Ou seja, está presente intrinsecamente em diferentes esferas – inclusive nas organizações privadas. Portanto, assim como o governo, é também responsabilidade das empresas garantir mais igualdade e justiça social para meninas e mulheres. Seja por meio de suas estruturas internas ou com serviços e produtos voltados a ajudar esse público.

No contexto da pandemia especificamente, empoderar as mulheres, oferecendo oportunidades iguais e apoiar as cidadãs em situação de vulnerabilidade é uma questão importante não só para avançar a igualdade de gênero, como também para acelerar a recuperação econômica.

Tem interesse em saber mais sobre como o poder privado pode contribuir para o ODS 5 durante a pandemia? Leia a segunda parte deste artigo e conheça algumas empresas que estão trabalhando para garantir que as mulheres tenham seus direitos garantidos durante a crise de Covid-19.

Confira:

  O papel das empresas para garantir igualdade de gênero durante a pandemia de Covid-19

 

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Francine Pereira

Jornalista, especializada em criação de conteúdo digital. Há mais de 10 anos escrevo sobre tendências de consumo, inovação, tecnologia, empreendedorismo, marketing e vendas. Minha missão aqui no A Economia B é contar histórias de empresas que estão ajudando a transformar o mundo em um lugar mais justo, igualitário e sustentável.

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