Peter Drucker é autor de uma frase que se tornou uma das máximas do meio corporativo: “A cultura come a estratégia no café da manhã”.
Em linhas gerais, o “pai” da administração (1909-2005) queria dizer que planejamento estratégico nenhum se sustenta se não estiver conectado ao que a empresa é em seu dia a dia, longe das campanhas de marketing e dos discursos de gestores.
Quando a cultura organizacional é bem definida, cultivada, comunicada e compreendida por profissionais de todos os níveis hierárquicos, os caminhos para tomar decisões eficientes estão traçados. Não se perde tempo com discussões irrelevantes e desconectadas da realidade e dos objetivos da empresa. E todos sabem o seu papel.
Agora, quando o oposto prevalece, a cultura engole a estratégia e a ineficiência toma conta de processos, projetos e pessoas…
Especialmente em tempos de crise, quando apenas seguir tocando o barco não basta, empresas que possuem uma cultura sólida têm esse diferencial competitivo intangível ao seu lado, que funciona como um direcionador da estratégia e como um solucionador de problemas de forma antecipada.
Cultura forte é inovação permanente
Um bom exemplo disso vem do Sistema B, organização responsável por certificar as empresas B na América Latina.
Em fevereiro de 2020, Francine Lemos assumiu o cargo de Diretora Executiva da instituição. Antes disso, ela ocupou o mesmo cargo na Cause (empresa B de que é cofundadora) por quatro anos e teve uma passagem de 12 anos na Natura.
A Natura, aliás, é uma empresa B certificada desde 2014, é referência internacional em sustentabilidade e valoriza sua cultura como poucas. “O posicionamento da empresa é muito real. Isso acaba gerando uma transformação pessoal muito forte nas pessoas. Quando cheguei, em 2006, participei de um workshop de sustentabilidade para fazer as pessoas mensurarem sua pegada de carbono. Estou falando de 15 anos atrás! Quando a Natura virou uma Empresa B foi algo muito celebrado internamente. A empresa ajudou a construir o próprio movimento”, revela.
Quando a cultura guia o caminho
Menos de 30 dias depois de Francine assumir a gestão do Sistema B, quando ainda estava se ambientando e conhecendo os profissionais da equipe, a pandemia os forçou a fechar o escritório. Desde então, o time todo passou a trabalhar de casa.
Naquele momento, ela se viu diante de uma situação de alta complexidade em termos de gestão, mas que foi superada, sobretudo, pela cultura do Sistema B e seu propósito muito claro: redefinir o papel dos negócios na sociedade. “Liguei o modo crise e fiquei muito focada no que precisava ser feito e em como gerar valor para quem estava na rede. Quando você se guia pelo propósito da organização e isso passa a ser um norteador, você não tem dúvidas sobre o que fazer. Me apeguei muito à visão do Sistema B. Se estou construindo/contribuindo para a visão, faço. Se não, não.”
Como resultado prático, ao longo de 2020 o Sistema B lançou uma série de iniciativas para apoiar sua comunidade de associados e, também, para fortalecer seu posicionamento. Entre as ações realizadas, destacam-se:
CoVida20
Programa de financiamento para negócios de impacto comprometidos com a manutenção de emprego e renda durante a pandemia de Covid-19. Em parceria com o Capitalismo Consciente e duas gestoras de recursos (Tre e Din4mo) que são empresas B, o fundo deu suporte a 57 empresas e contribuiu para manter emprego e renda de 750 pessoas.
A união faz a força
O movimento global B Interdependent criou uma área no site para reunir ações de empresas B do mundo todo para enfrentar a crise. Essa iniciativa fortalece o senso de comunidade e o compartilhamento de boas práticas e soluções de enfrentamento à crise.
B Movement Builders
Programa liderado pelo B Lab, pela Danone e pela Natura voltado a empresas globais de capital aberto. As organizações que aderem ao movimento se comprometem a usar a Avaliação de Impacto B (BIA) para medir e gerenciar os impactos sociais e ambientais, a produzir e compartilhar publicamente uma avaliação de materialidade e a estabelecer metas e mostrar progresso em direção ao cumprimento de pelo menos três metas aspiracionais vinculadas aos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU.
Seja Antirracista
Em parceria com o Instituto Identidades do Brasil (ID_BR), o Sistema B lançou o Manifesto Seja Antirracista, que foi assinado por mais de 43 mil pessoas, de 391 empresas que se comprometeram a assumir o compromisso público de agir em prol da igualdade racial.
Como construir uma marca forte na nova economia
Os exemplos acima são ações práticas que refletem os valores e a cultura da marca. “Ser B não é uma posição, é uma direção. Estamos trabalhando intensamente nisso, especialmente nas temáticas do antirracismo e das mudanças climáticas. Entendemos a nossa responsabilidade quanto movimento nas grandes questões do nosso tempo”, conta.
Francine lembra que o fato de haver uma consciência muito maior na sociedade hoje exige que marcas estejam atentas às questões mais sensíveis que vivemos.
“Não se pode ignorar a crise climática e a desigualdade galopante. Por outro lado, não se pode olhar só para fora, sem olhar para dentro. No fim do dia, marcas fortes são as que conseguem gerar uma conexão muito intensa com seu público.
As marcas que têm a capacidade de entender os valores que estão emergindo na sociedade, antecipá-los e dar um retorno, são as que conseguem evoluir com o tempo. E nosso tempo está pedindo posturas diferentes.
Uma marca relevante parte do que é dela, do que tem a ver com os seus valores, propósito e essência e através dessa lente endereça questões pertinentes para a sociedade. Esse é o cruzamento perfeito. A marca consegue evoluir com o tempo sem perder o que é importante para ela.
O propósito precisa ser perene. Não tem que mudar o tempo todo, mas precisa sempre ser relevante. E isso só se alcança se a empresa olha para dentro e endereça o que a sociedade está pedindo. As marcas que perdem essa conexão vão ficar pra trás.”
Como mudar o sistema de dentro para fora
O Sistema B é uma organização sem fins lucrativos que faz parte de uma comunidade global de líderes que usam os seus negócios para a construção de um sistema econômico mais inclusivo, equitativo e regenerativo para as pessoas e para o planeta. E isso não se faz “apenas” com uma marca forte e cases de comunicação de alto impacto.
Para dar escala ao movimento é preciso cavar mais fundo e reconfigurar as regras do jogo capitalista. “São várias frentes para promover mudanças sistêmicas. Não é à toa que nos chamamos Sistema B. Queremos fazer mudanças sistêmicas, influenciar todos os setores. Desde o mercado de capitais, academia, consumidores, empresas que não são B e empresas que são B para que sejam cada vez mais B”, explica.
Com o crescimento dos debates sobre critérios ambientais, sociais e de governança nas empresas (ESG), o mercado se mexeu, e transformações relevantes vêm surgindo no centro dos sistemas financeiros e legislativos mundo afora.
Nos Estados Unidos, por exemplo, as Benefit Corporation são uma qualificação jurídica (como as S/A, LTDA, Micro Empresa, etc. no Brasil) regulamentadas por um projeto de lei em 37 estados (e contando). Enquadram-se nesse modelo empresas que fazem parte do chamado capitalismo de stakeholders. Ou seja, são empresas com fins lucrativos, mas não somente. Ainda que não sejam necessariamente empresas B certificadas, a lógica é parecida.
Na França, uma lei de 2019 criou as chamadas “Entreprise à Mission”. São empresas que têm objetivos ambientais e sociais alinhados ao seu propósito e documentados nos registros legais da empresa.
A Danone, que já tem 50% de sua receita global vinda de subsidiárias que são empresas B, é o maior exemplo. Recentemente, aliás, a empresa antecipou a ousada meta de certificar todas as suas marcas até 2030 para até 2025. Isso significa ter 100% de uma receita de mais de 25 bilhões de euros anuais vindos de empresas B.
No Brasil, o decreto presidencial 9977/2019 criou a Estratégia Nacional de Investimentos e Negócios de Impacto (ENIMPACTO) e o Comitê de Investimentos e Negócios de Impacto. De acordo com seu Art. 1º, o Decreto “tem a finalidade de articular órgãos e entidades da administração pública federal, do setor privado e da sociedade civil para a promoção de um ambiente favorável ao desenvolvimento de investimentos e negócios de impacto”.
O Sistema B é um dos agentes envolvidos nessa empreitada que é o primeiro passo legal para o país regulamentar as futuras Sociedades de Benefício, tipo de CNPJ semelhante aos exemplos dos EUA e França. O anteprojeto de lei está em trâmite administrativo interno no Ministério da Economia.
A Nova Economia no mercado de capitais
No mercado financeiro mudanças importantes avançam.
O Índice de Sustentabilidade da B3 (ISE B3), que existe desde 2005, hoje tem como prioridade induzir boas práticas ESG no mercado brasileiro. Como parte disso, passou a incorporar critérios do B Impact Assessment (BIA) – a ferramenta de certificação do Sistema B – no processo de análise de empresas candidatas a ingressar no Índice.
“A discussão dos fatores ESG nas companhias, sua adoção, evolução e maturidade ganharam destaque na pauta estratégica das empresas. Vimos o número de participantes do processo do ISE subir 69% em 2020, o que é uma das evidências disso. Desenvolver a pauta ESG pode melhorar o acesso ao capital, mitigar riscos e atender uma demanda crescente dos investidores, consumidores e da sociedade”, relata Ana Buchaim, diretora de Pessoas, Comunicação, Marketing e Sustentabilidade da B3, em release à imprensa em dezembro de 2020.
O fato é relevante porque o ISE B3 é restrito às empresas mais líquidas da bolsa. Ou seja, são as mega corporações sendo obrigadas a se adaptar a uma nova realidade que cada vez mais exige que empresas sejam melhores para o mundo e não só para seus acionistas.
Do ambiente regulatório do mercado de capitais chegam mais sinais de influência da nova economia. Nos últimos meses, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) fez uma audiência pública para alterar a Instrução 480. Um dos objetivos é “aprimorar a prestação de informações ligadas a questões ambientais, sociais e de governança, de modo a atender à crescente demanda de investidores pelo tema”.
O Sistema B trabalha em parceria com a CVM na temática. “Fazemos um trabalho muito forte de advocacy. Quando uma autoridade como a CVM coloca para o mercado todas essas questões e padrões, é uma forma de influenciar e mudar as regras do jogo”, celebra Francine.
Regras mais rígidas ajudam a evitar o greenwashing – quando empresas se apropriam de conceitos ambientais apenas para fins comerciais e de marketing –, trazem mais transparência para os investidores sobre o compromisso firmado pelas empresas e tendem a gerar mudanças em escala. “Existem muitos relatórios – como a carta de Larry Fink, chairman da Blackrock – apontando a relevância e a capacidade de geração de valor que uma empresa sustentável tem. Não é só uma questão de diferenciação, mas de lucratividade, por isso estamos vendo essa corrida de empresas em direção ao ESG”, sinaliza.
Todos esses movimentos que ocorrem simultaneamente indicam não só uma tendência em curso, mas indícios de que essa nova economia já está em vigor. E crescendo. Nesse sentido, não é exagero dizer que ser uma empresa B é equivalente a ter um selo ESG embutido, que a valoriza perante toda a sua cadeia de stakeholders.
“Uma empresa B é uma sinalização de posicionamento porque tem uma preocupação genuína. O processo de certificação é difícil. A empresa tem que provar e documentar todas as práticas que faz. Então, o selo confere muita credibilidade. Uma das exigências para obter a certificação B é que a empresa faça uma alteração em seu estatuto social. Ao fazer isso, a empresa assume o compromisso da gestão por propósito por meio da governança.”
Dicas culturais B
“Cada um de nós precisa ser uma pessoa B. Precisamos começar a transformação em casa e nos educar sobre todas as questões que estão ocorrendo. Quanto mais entendemos sobre, mais consciência temos para fazer o que tem que ser feito”, pontua Francine.
A partir dessa reflexão, pedi que a Diretora Executiva do Sistema B compartilhasse dicas culturais relacionadas ao universo B, que ajudam nessa jornada de desenvolvimento pessoal. Ela deu três sugestões:
- Podcast Copo ½ Cheio. Comandado por Fernanda Cortez, ativista ambiental e autora do projeto Menos 1 Lixo, trata de temas que investigam como podemos criar um mundo novo a partir de novas visões para enxergar esse mundo. Francine participou do episódio 6, intitulado Capitalismo: uma matemática que não fecha.
- Podcast Microrrevoluções. Produção do Verdes Marias, um movimento que busca inspirar pessoas a ingressarem numa vida mais sustentável, por meio de microrrevoluções em suas vidas. Como eu, enquanto indivíduo, posso colocar práticas mais sustentáveis no meu dia a dia?
- Documentário AmarElo – É Tudo pra ontem (Netflix). Projeto do rapper Emicida e seu Laboratório Fantasma de resgate e valorização da cultura e dos movimentos negros no Brasil nos últimos cem anos. O filme é uma aula poética, potente, que impacta e desperta.
Alerta do editor: você vai se emocionar com o Emicida. E se seguir os caminhos que apresentamos aqui, deixará Drucker orgulhoso.
Vou deixar como dica extra um artigo em que compartilhamos diversas dicas de livros, podcasts e vídeos sobre a luta antirracista.
Leia outras histórias de “pessoas B”
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[…] Como destaca Francine Lemos, diretora executiva do Sistema B, em entrevista ao A Economia B: […]
[…] “A novidade é que a extensão de vida que ganhamos muda completamente nosso curso de vida e nossos ciclos profissionais. E a tecnologia vem alterando as profissões tão rapidamente que nem quem se formou há cinco anos está mais tão atualizado. Ou seja, teremos que estudar por toda vida, nos preparar para ciclos profissionais curtos e ter várias ocupações ao longo da carreira”, ressalta Serapião, que é também co-presidente do conselho do Sistema B Brasil. […]