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Uma utopia realista alcançada através da renda básica universal

https://www.aeconomiab.com/utopia-realista-atraves-da-renda-basica-universal/
Marrakesh, dez/19

Em Utopia para Realistas, o historiador holandês Rutger Bregman apresenta caminhos para avançarmos para um modelo econômico mais igualitário, humano e, por que não, feliz. A renda básica universal é um dos pilares.

Nos acostumamos a conviver com a desigualdade, com o nacionalismo, com a meritocracia e com a devoção ao trabalho. Como resultado, temos um planeta e uma sociedade à beira do colapso, flertes com o autoritarismo e um aumento significativo nos casos de burnout, ansiedade e depressão. 

Nesse contexto, é fácil, em um primeiro olhar, cravar como utópicas ideias que parecem impensáveis. Vamos tentar?

E se…

… os países não tivessem fronteiras que impedem a imigração?

… trabalhássemos 15 horas por semana?

… as pessoas que não têm recursos para viver com dignidade recebessem uma renda mensal sem precisar prestar contas sobre o que estão fazendo com o dinheiro? 

Utopia para realistas e a renda básica universalÉ isso o que Rutger Bregman propõe em Utopia para realistas – como construir um mundo melhor, publicado em 2018 pela Editora Sextante.

Enquanto tais ideias podem soar absurdas, um exercício de contextualização histórica ajuda a entender as coisas com mais clareza e sem julgamento.

Se quisermos mudar o mundo temos que ser idealistas, insensatos e impossíveis. Aqueles que reinvidicavam a abolição da escravidão, o voto feminino e o casamento entre pessoas do mesmo sexo também já foram chamados de lunáticos um dia. Até a história provar que eles estavam certos”, recorda.  

Não é que o livro apresente um caminho irrefutável para resolver todas as mazelas do planeta, mas cumpre o papel de jogar uma luz sobre temas relevantes que, por serem mal compreendidos ou por estarem enraizados em inverdades ideológicas, acabam ficando em segundo plano no debate político e empresarial. O mais amplo e urgente entre os três apresentados no livro é a renda básica universal (RBU).

Por que dar dinheiro para quem não tem é bom para a economia? 

O autor começa falando sobre como o capitalismo foi importante em diversos aspectos, mas que é hora de encontrarmos um caminho mais sustentável. Afinal, junto com o aumento da renda per capita mundial e com os avanços tecnológicos pós Revolução Industrial, os últimos dois séculos foram marcados pelo aumento da concentração de renda e da desigualdade. 

Este trecho resume bem o ponto de partida da argumentação da obra: 

“Não me interprete mal, o capitalismo é um fantástico motor para a prosperidade. Mas é justamente porque somos mais ricos do que nunca que hoje está a nosso alcance dar o próximo passo na história do progresso: garantir a cada pessoa a segurança de uma renda básica. É isso que o capitalismo deveria estar almejando esse tempo todo. Encare como um dividendo sobre o progresso, tornado possível por sangue, suor e lágrimas das gerações passadas.”

rutger bregman – Utopia para realistas e a renda básica universal
Rutger Bregman

O debate sobre renda básica não é novo.

Thomas Moore trouxe o conceito ao mundo na Utopia original, publicada em 1516. Desde então, o tema foi defendido inúmeras vezes por pensadores, políticos e economistas de visões antagônicas, que vão de Karl Marx e John Maynard Keynes a Richard Nixon e Milton Friedman. De FHC a Lula. 

Vários projetos de renda básica foram executados pelo mundo em diferentes épocas. Do Canadá à Namíbia, passando por Maricá (RJ), registros históricos comprovam o óbvio:

dar dinheiro para quem não tem melhora o indivíduo, a economia e a sociedade. E não faz com que a pessoa se torne acomodada e preguiçosa. 

Nós estamos trabalhando em uma reportagem que vai contar melhor essas histórias, especialmente o projeto de Maricá, mas, até lá, recomendo a leitura das sugestões que indicamos ao fim do artigo. A ideia aqui não é fazer um guia completo sobre o que é, como funciona e como financiar a renda básica, mas trazer dados, curiosidades e histórias sobre o assunto. 

Para uma sociedade viciada em trabalho, dinheiro, imagem e bens materiais, que idolatra ricos simplesmente por serem ricos e que é baseada em conceitos meritocráticos, pode parecer impensável dar dinheiro para pessoas sem exigir nenhuma contrapartida. 

Dentro desse pensamento há espaço para viés ideológico, preconceito, falta de empatia, de consciência de classe ou simplesmente de noção. Tem de tudo. Inclusive, uma profunda falta de compreensão sobre o assunto. 

Talvez venha daí a razão de a pauta ser ignorada, mesmo com o Brasil tendo uma lei do então senador Eduardo Suplicy, sancionada pelo então presidente Lula em 2004.

A Lei 10.835/2004, porém, nunca foi regulamentada. No entanto, em abril de 2021, o STF decidiu que o Governo deve estabelecer a renda básica no orçamento de 2022. Há de se acompanhar o debate político para entender de que forma isso vai se desenhar. 

A renda básica é economicamente inviável e deixa as pessoas preguiçosas?

Argumentos contrários à renda básica costumam se concentrar na inviabilidade econômica e no incentivo à preguiça. Porém, eles não se sustentam diante da realidade. “Estudos de todas as partes do mundo oferecem provas definitivas: dinheiro grátis funciona. Já existem pesquisas correlacionando a distribuição incondicional de dinheiro a reduções de criminalidade, mortalidade infantil, desnutrição, gravidez na adolescência, falta às aulas e a melhorias nos resultados escolares, crescimento econômico e igualdade de gêneros”, conta Bregman.

O autor comenta estudos que atestam que uma política de eliminação da pobreza poderia amplamente pagar por si mesma.Greg Duncan, professor da Universidade da Califórnia, calculou que tirar uma família americana da pobreza custa cerca de 4.500 dólares por ano. No fim, o retorno desse investimento, por criança, seria de: 

  • 12,5% mais horas trabalhadas; 
  • 3 mil dólares a menos em gastos com benefícios sociais; 
  • 50 mil a 100 mil dólares em ganhos adicionais na vida do indivíduo; 
  • 10 mil a 20 mil dólares a mais na receita do imposto de renda estadual. 

O professor Duncan concluiu então que combater a pobreza ‘dá retorno total ao investimento no momento em que essas crianças alcançam a meia-idade’”, compartilha o historiador holandês.

Resumindo: a renda básica traz dignidade, melhora a vida de todos, reduz custos do Estado com saúde, educação e segurança e promove o crescimento econômico.

renda básica universal: protesto em barcelona
Barcelona, mai/19

A presunção de quem acha que sabe o que é melhor para os pobres

Margaret Thatcher (primeira-ministra do Reino Unido de 1979 a 1990) acreditava que “pobreza é um defeito de personalidade”.

O personagem Caco Antibes, do programa humorístico “Sai de Baixo”, dizia que tinha “horror a pobre”. 

Certa vez, ao comentar a alta histórica do dólar em sua gestão, o ministro Paulo Guedes declarou: “Todo mundo indo para a Disneylândia, empregada doméstica indo para Disneylândia, uma festa danada. Pera aí. Vai passear em Foz do Iguaçu, vai passear ali no Nordeste, está cheio de praia bonita. Vai para Cachoeiro do Itapemirim, vai conhecer onde o Roberto Carlos nasceu, vai passear o Brasil, vai conhecer o Brasil. Está cheio de coisa bonita para ver.”

Na esteira da declaração de Guedes, o autor de Utopia para realistas questiona a prepotência dos “donos da razão”. “O bom do dinheiro é que as pessoas podem comprar o que precisam e não coisas que os ‘especialistas’ acham que elas precisam. Imagine quantos cientistas brilhantes, empreendedores e escritores estão agora definhando na escassez. Imagine quanta energia e talento nós liberaríamos se nos livrássemos da pobreza de uma vez por todas”, pondera. 

Tomando como exemplo dados que não são necessariamente ligados à renda básica, mas estão relacionados, dá pra ter uma ideia do que isso significa, na prática.

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgou um estudo em 2019 que atesta que bolsistas do ProUni com bolsa integral têm desempenho superior aos demais universitários. Mais do que isso, os alunos com renda familiar mais baixa (até 3 salários mínimos) foram os que tiveram o melhor desempenho no Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade) entre 2015 e 2017.

A cognição é afetada quando quando o dinheiro é escasso

Críticos de programas de transferência de renda como o Bolsa Família (que, de certa forma, exerce uma função similar à da renda básica, mas com características e condições diferentes) costumam argumentar com o clássico: “Não se pode dar o peixe; é preciso ensinar a pescar”, o que é fácil de falar quando você não está entre os mais de 13 milhões de brasileiros que vivem hoje abaixo da linha da pobreza… 

Eldar Shafir é psicólogo e professor da Universidade de Princeton. Em parceria com Sendhil Mullainathan, economista e professor da Chicago Booth, escreveu o livro Escassez: por que ter muito pouco significa tanto. 

Na obra, os pesquisadores dissertam sobre como o fato de viver na escassez afeta a capacidade de tomar decisões, pois a pessoa é constantemente consumida por uma angústia e desespero permanentes. Consequentemente, concentrar-se em qualquer coisa que não seja manter-se vivo se torna complexo. “O autocontrole se torna um desafio maior. Você é distraído ou perturbado com facilidade. E isso acontece todos os dias”, explicam os autores.

Renda Básica Universal: Uma necessidade iminente para um futuro do trabalho automatizado e precarizado

A renda básica é uma questão essencial em razão de um fenômeno que ocorre diante de nossos olhos, agora. A uberização da economia, por vezes disfarçada pelos storytellers de LinkedIn como gig economy para soar como algo moderno e disruptivo, e os avanços da automação em praticamente todas as atividades laborais.

Se no futuro iremos guerrear contra robôs como nos filmes de ficção científica eu não sei, mas é certo que uma parte relevante da força de trabalho já perdeu a batalha para a tecnologia.

Em 2017, a McKinsey estimou que cerca da metade das atividades pelas quais as pessoas são remuneradas no mundo poderiam ser automatizadas.

De lá pra cá, poucos anos passaram, mas a análise se confirma. Bots substituem atendentes humanos, lojas funcionam sem vendedores, robôs cozinham, escrevem e até fazem cirurgias. A lista de empregos já extintos ou fadados à extinção é extensa e desproporcional à quantidade de vagas criadas pelas profissões novas e majoritariamente especializadas que surgem a cada dia na era digital.

Como se não bastasse o presente “distópico”que vivemos, a pandemia acelerou a precarização do trabalho.

Notícia publicada no site do Governo Federal comemora o crescimento de 8% no número de Microempreendedores Individuais, em 2020. Mas, na prática, basta olhar para a realidade para constatar que a maioria dos 2.663.309 novos MEIs não criou seu CNPJ porque percebeu que a pandemia seria a hora perfeita para iniciar sua jornada empreendedora.

O Brasil fechou 2020 com uma taxa de desemprego de 13,9%. Dados do IBGE divulgados em janeiro de 2021 evidenciam que a taxa de informalidade atingiu 41% no quarto trimestre de 2020, totalizando 38,4 milhões de pessoas.

É difícil imaginar um futuro não distante em que esse contexto de extinção de profissões, menos ofertas de emprego, trabalhos precários e menos direitos trabalhistas não gere uma crise humanitária. E, por mais utópica que a ideia da renda básica seja para algumas pessoas, em um futuro sem trabalho, não existirá outro caminho.

Se a conversa soa um tanto apocalíptica é porque, de fato, é. A pandemia evidenciou como seria um mundo sem trabalho, e os breves e desorganizados meses de auxílio emergencial deixam claro a importância da pauta.  

calles de madrid
Madrid, jul/19

Abismos ideológicos atrapalham avanços sociais e econômicos

Um exemplo prático de como a polarização política nos afasta de debates importantes é o fato de a renda básica ser considerada uma política de esquerda em alguns núcleos direitistas, mesmo sendo apoiada por liberais consagrados, como Milton Friedman. Inclusive, na década de 1960, Friedman defendeu a ideia de um imposto negativo para os mais pobres. Há um artigo que explica a teoria de Friedman no fim do texto. 

Propostas efetivas para amenizar as desigualdades são ignoradas por sermos um país dividido. Porém, não estamos falando aqui de políticas esquerda ou de direita, mas de entender o mundo que se desenrola diante de nossos olhos.

Bregman explica bem o cenário que faz com que muitos privilegiados ainda torçam o nariz quando ouvem falar em políticas públicas voltadas à população de baixa renda…

“À medida que as pessoas e as sociedades vão envelhecendo, elas ficam acostumadas ao status quo, em que a liberdade pode se tornar uma prisão e a verdade pode se transformar em mentira. O credo moderno – ou pior, a crença em que não há mais nada em que se acreditar – impede-nos de enxergar a miopia e a injustiça que ainda nos cercam diariamente.”

Mas, com o crescimento recente dos debates sobre a renda básica universal e dos casos com resultados positivos pelo mundo, dá para sonhar com dias em que vamos olhar para esse pensamento com a mesma vergonha que hoje olhamos para ações genocidas, segregadoras e antidemocráticas do passado…

“Eu sou historiador. E o que a história nos ensina é que as coisas podem ser diferentes. Não há nada inevitável em como estruturamos nossa sociedade e nossa economia atualmente. As ideias podem e mudam o mundo. E acho que, especialmente nos últimos anos, ficou bastante claro que não podemos manter o status quo; precisamos de ideias novas”, alerta. E elas existem!

Para entender melhor a renda básica

Exemplos de projetos de renda básica pelo mundo

assine o farol

João Guilherme Brotto

Jornalista e co-fundador de A Economia B. MBA em Desenvolvimento Sustentável e Economia Circular e Multiplicador B do Sistema B Brasil. Baseado na Espanha, está sempre viajando pela Europa para cobrir eventos e investigar tendências de sustentabilidade, regeneração e ESG.

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